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A força do brincar

- Nádia Lima -

Quero contextualizar as vivências para agregar significado aos feitos:


"Não existem pessoas a frente de seu tempo"

March Bloch

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Somos resultado daquilo que experimentamos, que presenciamos e ao mesmo tempo somos influentes no espaço e no tempo em que vivemos, é desse modo que enxergo o brincar. Ao mesmo tempo em que se apresenta como um produto do seu tempo carregado de significados culturais, sociais, políticos e também econômicos, as brincadeiras se transformam carregando em si um pouco da individualidade de cada pessoa ou grupo que as propõe, repleta de identidade e representatividade.

Sou produto do tempo em que vivo. Nasci em 1993, São Paulo em uma comunidade periférica da zona norte da capital. Meus pais nordestinos, arrastados pela esperança e pelo sonho de uma vida melhor na cidade das oportunidades. Batalhadores, guerreiros e sobreviventes só por estarem vivos em um contexto de sofrimento e miséria, mas ao mesmo tempo de muita força e fé. Alguns jogos carregam manuais sobre como devem ser jogados, mas a vida não e sei que meus pais fizeram o que podiam ter feito.

Meu pai sempre foi muito trabalhador, me ensinou muito sobre ser honesto e ter força de vontade para enfrentar a vida, mas fez muita falta em minha infância. Já minha mãe foi o maior exemplo de pessoa que eu poderia ter, por tudo que já enfrentou e por todas batalhas que já venceu, foi mãe e pai ao mesmo tempo. Os dois juntos tiveram três filhos, eu componho parte desse trio, entretanto meu pai teve mais uma filha com outra pessoa e, antes de conhecer meu pai, minha mãe já tinha três filhos que foram criados pela minha avó. Meu pai teve seis irmãos e minha mãe sete, que conseguiram sobreviver. E neste contexto eu cresci. Muito envolvida com a família materna, porém com grande influencia da família paterna que desde cedo decidiam o que devia seguir na vida religiosa, quase todos são testemunha de Jeová. A família materna dizia que eu devia seguir a igreja católica. Todos decidiam o que eu tinha que fazer ou para onde deveria ir, até hoje tenho dificuldades em tomar minhas próprias decisões sobre coisas simples da vida. As coisas nunca foram fáceis, mas tive uma infância feliz e uma família beeeeeeeeeem grande, muitos primos para brincar.

Lembro-me de dois contextos em que a brincadeira esteve muito presente: com meus irmãos e na escola. O primeiro contexto era divertido e os dois são incríveis, apesar de todos os pesares, fomos crianças bem próximas e isso criou um vínculo muito forte em nós, sempre brincávamos das mesmas coisas e percebo que tive bastante influencia na vida dos dois. Ao mesmo tempo a diferencia de gênero implicava nosso brincar quanto às definições sociais do que é ser mulher ou do que é ser homem. Aquela velha história entre brinquedos de meninas e brinquedos de meninos, enquanto eu queria um Power Ranger meu irmão queria uma boneca. A grande sacada em tudo isso foi a de que podíamos trocar quando quiséssemos e se tornou um segredo nosso!

O local que mais me sentia livre era na escola. Eu realmente gostei muito da experiência escolar, amava todas as professoras, todas as atividades, todas as propostas e principalmente a sexta feira do brinquedo e as tardes no parque. Não me lembro de me opor a nenhuma brincadeira, eu realmente ficava muito brava quando minha mãe não me levava à escola, eu que dava as broncas nela quando isso acontecia, é até engraçado isso! Amava as brincadeiras de roda, corre cotia, ciranda-cirandinha, passa anel, sempre gostei de pega-pega, pic-esconde e eu realmente era muito boa nisso e foram fundamentais para que me envolvesse com esporte durante a adolescência. Lembro-me de brincadeiras em que eu poderia experimentar a vida e talvez até encarar meus medos, adorava ser a professora!

As pessoas estavam sempre escolhendo as coisas por mim sobre como devia brincar, como devia agir, como devia ser ou o que devia fazer. Dificilmente me posicionava, cresci com medo de enfrentar os desafios, me posicionar, não tinha peito para dizer o que queria ou não queria em uma brincadeira, sempre deixei que as pessoas escolhessem por mim. Talvez faltassem mais brincadeiras desafiadoras em minha vida, em que precisasse decidir e arcar com as consequências de minhas escolhas.


Em uma brincadeira na escola, em que desta vez o personagem interpretado era uma médica que apenas queria diagnosticar seu paciente, foi interpretado erroneamente por um adulto que me acusou, de uma maneira agressiva e autoritária, por ser lésbica. Eu tinha 4 anos, eu não sabia o que era ser lésbica. Hoje sei que... o maior problema das crianças, são os adultos.

A sociedade patriarcal exige mais das mulheres, isso não é nenhuma novidade e sendo de uma classe social baixa, exigiu mais um pouco. Reconheço meus privilégios, sei que se fosse uma mulher negra teria sido mais difícil, se fosse uma pessoa com deficiência teria sido mais complicado, e assim por diante. Coisas que no brincar livre quase não existem, ou se existem podem ser enfrentadas e superadas.

Fui crescendo a responsabilidade foi chegando e as exigências aumentando, agora eu tinha que ajudar a minha mãe a cuidar da casa e dos meus irmãos. Por sorte herdei essa garra e força do povo nordestino e não deixei de fazer aquilo que amava: ir para escola. Meus irmãos já não tiveram tanta sorte, meus pais sempre achavam mais importante trabalhar e ter o que comer do que estudar. Talvez se na escola pudesse ter brincado mais, teria sido ainda mais libertador, mesmo assim, agradeço hoje por toda oportunidade que me foi dada, por toda chance que eu tive de seguir em frente. Parei de brincar... ou talvez não.

Hoje, enquanto "Agente do brincar", percebo que o brincar está nas coisas mais simples, nos momentos mais inesperados e mais inoportunos. Mesmo quando não “parece uma brincadeira” você está brincando. Tudo isso porque o brincar está em nós. Quando estamos em grupo ou quando estamos sozinhos, quando tudo facilita ou quando tudo dificulta. Vejo o brincar como uma ferramenta de enfrentamento, de desafios, de encontros, de escolhas, de posicionamentos, de identidade, de memória, de acolhimento e de cura, mas também pode ser uma ferramenta de exclusão e de violência. O segredo está, assim como em toda ferramenta, no uso que você dá a ela.


Ser um agente do brincar é uma tremenda responsabilidade e para ser um bom agente imagino que é necessário muito respeito, empatia, sensibilidade, estudo, competência, dedicação e força de vontade. É necessário força para enfrentar as próprias correntes que aprisionam e impedem de brincar livremente. Ser um agente do brincar é mais do que ter habilidade e competência para criar oportunidades onde as pessoas possam brincar livremente, é preciso se (des)construir diariamente, é necessário enfrentar e transformar todos os dias a forma como vê o mundo e as pessoas, é fundamental aceitar abertamente quando não está no caminho correto. E o mais importante... para ser um agente do brincar é preciso... simplesmente brincar. Penso que para ser um agente do brincar você precisa, antes de tudo, brincar!

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