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A literatura infantil e a representatividade negra 

- Daniela Souza Meira -

Muito do que é visto e vivido desde a infância não é questionado na juventude e na vida adulta. Os grupos sociais moldam grande parte das crenças e hábitos adquiridos. Além disso, os livros didáticos e paradidáticos apresentados na primeira infância são referência para as crianças, pois um mundo mágico é adentrado e tido como verdadeiro. O poder da literatura – em especial a infantil - é grandioso e inspirador, pois alcança os territórios subjetivos das crianças.

Já é assunto conhecido que na literatura infantil há um abismo no que diz respeito às questões de gênero e raça. Princesas, em sua maioria brancas e de cabelos lisos e loiros, são tidas como ícones de beleza a serem alcançados, ao mesmo tempo em que são frágeis e são felizes apenas quando encontram um príncipe – também branco - que as salva. Há então a imposição da falsa ideia de felicidade e modelos de beleza branca se tornam símbolos, trazendo danos à autoestima das crianças – principalmente as crianças negras. É neste ponto que muitas crianças não se veem representadas nas folhas ilustradas que estão em suas mãos e passam a desejar ter pele branca e cabelo liso e loiro, pois elas não encontram personagens que sejam iguais ou parecidas com elas em seu tom de pele, traços e cabelo crespo.

Com a concepção da Lei 10.639/03 que estabelece a obrigatoriedade do ensino de "história e cultura afro-brasileira" dentro das disciplinas que já fazem parte das matrizes curriculares dos ensinos fundamental e médio, juntamente com a fixação do dia 20 de novembro como o dia da Consciência Negra no calendário escolar, foram obtidos avanços. Mas ainda é possível muitas melhorias. Ainda que essa lei favoreça o ensino e conhecimento da ancestralidade africana, falta muito para que se efetive de forma a quebrar todos os estereótipos e preconceitos. Além disso, segundo o Mestrando e Professor Thiago Pestana (informação verbal¹), é preciso ter um olhar atento e crítico para esta lei. Ela aborda e determina a inclusão da temática africana num recorte que deixa a desejar nas áreas de exatas e biológicas:

Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras (inciso 2º, artigo 26-A, Lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003).

Quando se fala em avanços é pertinente reconhecer que atualmente há grandes escritoras e escritores versando sobre o assunto e trazendo conteúdos muito relevantes. Escritores como Rogério Andrade Barbosa, André Neves, Kiusam Oliveira, Carmen Lúcia Campos e tantos outros, com encanto e ludicidade abordam em suas obras infanto-juvenis a riqueza, vastidão e beleza da cultura, natureza, história e religiosidades africanas.

Obras essas que estão tomando cada vez mais o merecido espaço, demonstrando que representatividade importa e que a luta contra o racismo deve ser iniciada na primeira infância. É notável a urgente necessidade de olhar criticamente ao racismo estrutural como marcador social. Este é muito presente nos livros didáticos em imagens, tirinhas e textos escolhidos. A história da África, berço da humanidade, que não começou com a vinda dos povos negros escravizados, tem sido propositalmente apagada. Corpos negros são violentados física e simbolicamente desde a infância.

(...) o discurso racista de desvalorização ou negação dos saberes e práticas culturais negras, presente em todos os contextos de desenvolvimento das crianças (família, escola e a comunidade) afeta diretamente o desenvolvimento psicossocial e os processos de construção identitária, autorreconhecimento e a autovaloração. Por outro lado, no dimensionamento dos problemas que afetam particularmente as crianças, adolescentes e jovens negros/as, é necessário considerar, ainda, os outros eixos de exclusão – de classe, de geração, de gênero e territoriais – que se enlaçam nas experiências singulares, potencializando as desvantagens enfrentadas. (Portal GELEDÉS, 2013)


É um ato de grande resistência trazer à tona a verdade e propiciar empoderamento às crianças a partir da literatura. Como exemplo, no livro O mundo black power de Tayó, Kiusam de Oliveira traz uma personagem negra que fala sobre a beleza de seu cabelo crespo e de tudo o que ele simboliza.Outra forma de trabalhar representatividade com as crianças é contar com obras que falem sobre outros assuntos do dia-a-dia, trazendo personagens negras no centro da história.

Um exemplo disso é o livro de Simone Pedersen “A galinha que botou uma batata”, onde há o diálogo entre a menina negra e a galinha. Essa é outra forma de a criança negra se enxergar na história.Fazer mediação de leitura utilizando livros em que haja reconhecimento das crianças nas histórias, faz com que elas encontrem significado positivo em suas vidas. Proporcionar variedade literária, deixando de lado as histórias estereotipadas de princesas frágeis, é urgente para que a autoestima dos pequenos e pequenas seja fortalecida fazendo com que se sintam belos em sua totalidade.

Para que isso aconteça na Educação Formal se faz necessário que o assunto esteja presente no Plano Político Pedagógico das escolas. A partir disso, as questões levantadas no texto estarão em pauta em todo ano letivo e não apenas em novembro. Na Educação não formal, a exemplo de trabalhos realizados em Bibliotecas Comunitárias, há maior liberdade para realização desses trabalhos. Podem ser feitas mediações de leitura com todas as idades – desde bebês até o público idoso - com o objetivo de quebrar estereótipos de gênero e raça, afim da construção da justiça social e equanimidade. O posicionamento necessário pode ser feito ao se ter predileção por contos africanos, histórias com personagens negras – como foi citado anteriormente -, livros de escritores negros e negras, escritoras mulheres, literatura e poesias periféricas no momento de escolher o material que irá mediar a roda de leitura.

Além disso, outra forma de quebrar estereótipos é utilizar histórias de mulheres reais. Autoras como Elena Favilli, Kate Pankhurst, Rachel Ignotofsky, Duda Porto de Souza produziram obras em que são contadas histórias de mulheres de todo o mundo. Valer-se de narrativas como essas pode enriquecer a vida das crianças, fazendo com que se aproximem mais de si mesmas, encontrando maior sentido no que que está sendo lido. Além da representatividade apresentada, esse pode ser um meio para se combater o analfabetismo funcional do país e a aversão à leitura tão presente na atualidade.O processo de alfabetização escolar [...] pode constituir-se tanto na perspectiva da domesticação/consciência ingênua, quanto na dimensão da libertação/consciência crítica. Pedagogicamente, a construção do processo de alfabetização escolar numa perspectiva crítica, [...], implica não só a existência de relações dialógicas contínuas e saudáveis em sala de aula, mas em especial a escolha de conteúdos que possibilitem a problematização da realidade. (Leite; Colello; 2010, p.38)

Falar sobre conscientização e analfabetismo é falar sobre cidadania e política. Segundo Freire:

A conscientização implica, pois, que ultrapassemos a esfera espontânea da apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica. (Freire, 1979, p.26)


E reitera: O processo de alfabetização política – como o processo linguístico –pode ser uma prática para a “domesticação dos homens”, ou uma prática para sua libertação. No primeiro caso, a prática da conscientização não é possível em absoluto, enquanto no segundo caso o processo é, em si mesmo, conscientização. (Freire, 1979, p.27)


Considerações Finais


Trazer luz à temática de representatividade na literatura infanto-juvenil é essencial e urgente. É imprescindível que as crianças criem o prazer de ler, associando ao reconhecimento de si. A leitura é um ato político que contribui para que cada um seja cada vez mais dono e dona de sua palavra e compreenda seu lugar no mundo e todas as possibilidades que isso traz.


Referências

¹ Fala do Professor Thiago Pestana na aula Diásporas Africanas do curso Africanidades, Literatura e Circularidades, Universidade Federal do ABC, em 10/11/2018 Referências Bibliográficas DEMO, Pedro. Política Social, Educação e Cidadania. Campinas, SP: Papirus, 1994. FAVILLI, Helena. Histórias de Ninar Para Garotas Rebeldes. São Paulo: Vergara & Riba, 2016. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1983.

IGNOTOFSKY, Rachel. As Cientistas: 50 Mulheres Que Mudaram o Mundo. São Paulo: Blucher, 2017. LEITE, Sérgio Antônio da Silva; COLELLO, Silvia M. Gasparian. Alfabetização e Letramento: pontos e contrapontos. São Paulo: Summus, 2010. OLIVEIRA, Kiusam de. O mundo no black power de Tayó. São Paulo: Peirópolis, 2013. PANKHURST, Kate. Grandes Mulheres que Mudaram o Mundo. São Paulo: Vergara & Riba, 2018. PEDERSEN, Simone. Tati Detetive em: A galinha que botou uma batata. São Paulo: Avis Brasilis, 2015. SOUZA, Duda Porto de. Extraordinárias: Mulheres que revolucionaram o Brasil. São Paulo: Seguinte, 2017. http://equidadeparaainfancia.org/2013/05/assalto-aos-direitos/ Acessado em 20 de junho de 2019 às 15h. https://www.geledes.org.br/infancia-negra-racismo-estrutural-e-novos-cenarios- na-america-latina/ Acessado em 21 de junho de 2019 às 18h. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm acessado em 22 de junho de 2019 às 19h.

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