- FERNANDA AP. COSTA RIBOLLA-
Ter sido criança na década de 80 foi um privilégio. Nasci na cidade de Guarulhos em 1982, num tempo em que brincar na rua livremente, sem ter necessariamente a supervisão de um adulto, ainda era possível.
Minhas memórias mais gostosas são as da época de escola, quando lá próximo dos sete ou oito anos, a rotina diária era estudar de manhã, fazer a lição de casa no retorno da escola, almoçar e ir imediatamente para a rua. Combinávamos, já no recreio, em qual casa nos encontraríamos, e dali, já inventávamos para onde iríamos e quais seriam nossas brincadeiras.
Por vezes, ficávamos perto das nossas casas, brincando onde alguns de nossos pais pudessem nos observar facilmente, quando quisessem. Elástico, Queimada, Alerta, Mãe da Rua, Stop, Amarelinha, Corda, Telefone sem fio, Esconde-esconde e Jogo de Bolinha de Gude faziam sempre parte do nosso repertório. Quando queríamos brincar no parquinho, desbravávamos os parques e praças do bairro e lá passávamos horas. Escalar o trepa-trepa de metal, me pendurar e ficar de ponta cabeça era, sem dúvida, minha brincadeira favorita.
Cuidávamos de avisar onde estaríamos. Sim, avisar era suficiente nessa época. No entanto, nem sempre éramos obedientes. Me recordo de dizer para minha mãe que estaríamos brincando em uma determinada pracinha, mas na verdade, o que iríamos fazer era apertar a campainha dos vizinhos e sair correndo. A cada quarteirão escolhíamos uma casa “sortuda” e depois, parávamos para rir das nossas traquinagens até fazermos xixi nas calças.
Definitivamente não vivíamos na época do ter e consumir. Meus pais nunca tiveram condições financeiras de nos encher de brinquedos e, ainda que tivessem, certamente não o fariam. Acho que por isso eu e meus irmãos sempre valorizamos muito o pouco que tínhamos, sem nunca ficarmos na dependência daquele brinquedo pronto e estruturado.
Poucos brinquedos significaram a chance de fazermos tudo com mais foco, por mais tempo e com criatividade. Nos divertíamos muito descobrindo e explorando a natureza ao redor. Brincar ao ar livre era o nosso principal recurso. Brincar no quintal da minha avó materna, então ... Quantas lembranças afetivas me chegam à memória. Histórias familiares contadas por ela ao pé de jabuticaba, comidinhas no tijolo improvisado de fogãozinho feitas com folhas e flores, os pulos em poças de lama depois da chuva, que depois viravam um grande rio para colocarmos nossos barquinhos de papel para navegar.
Lá perto dos meus dez anos, quando a bicicleta chegou em um aniversário, as brincadeiras tiveram muito mais aventuras. O filme “Os Goonies”, lançado em 1985 e que, posso garantir, por ter marcado tanto minha infância, se tornou o filme da minha vida, nos inspirou - eu e minhas amigas - a fazermos expedições à pedreiras e terrenos baldios das redondezas. Encarnávamos os personagens e saíamos com nossas bicicletas para reproduzir as cenas do filme bairro afora. O dia passava que não víamos. Quase sempre voltávamos para casa junto do anoitecer, já à espera do castigo que era certo. E o que importava os dois dias seguintes sem bicicleta, se aquele dia havia sido tão intenso? Também era divertido relembrar e comentar sobre aquilo que havíamos experimentado, que mal sabíamos, já marcava nossas vidas.
A minha “adultez”, por um longo período, manteve minhas memórias de infância adormecidas. Depois dos dezoito anos, a seriedade e a responsabilidade deram o tom para minha vida. Estudar, trabalhar, formar, estudar mais, trabalhar mais, casar. Não é que momentos divertidos não existiram, mas era uma diversão própria do adulto: conhecer restaurantes, ir ao teatro, ir ao cinema, ir para a balada, ir à shows, viajar, namorar.
Meu filho tem quatro anos de idade, então, tive que aprender sobre as brincadeiras mais adequadas para cada ano pelo qual ele passou. Eu acreditava que, enquanto bebê, as interações seriam mínimas e que as maiores demandas viriam depois que pelo menos ele já soubesse andar e correr. Mas bebês querem muito brincar e o melhor recurso que encontrei para promover as brincadeiras foi o meu próprio corpo. Me esconder atrás de um pano e aparecer, bater palmas, brincar com os sons que minha própria voz emitia eram as formas de brincar que mais o divertia. Também houve a fase dos estímulos sensoriais. Brincar com coisas que lhe permitissem essas vivências de pegar, sentir e experimentar materiais e texturas diferentes era sempre extremamente rico.
Agora que está maiorzinho, as brincadeiras dele se equiparam mais com as brincadeiras presentes em minhas lembranças de infância, com uma diferença gritante: o cenário não é mais o mesmo, o mundo mudou.
Eu cresci em uma cidade amigável, tranquila e segura, repleta de áreas naturais disponíveis para explorarmos e brincarmos. Avisar a minha mãe que iria para rua era o bastante, contanto que eu não chegasse depois do anoitecer. Andar a pé ou de bicicleta pelas ruas do bairro era algo que fazia parte do nosso cotidiano. Os vizinhos cuidavam um pouco da gente, inclusive, porque a rua fazia parte de suas vidas também. Todos conheciam os rostos de todos.
Meu filho hoje não tem sequer metade das possibilidades que eu tive de brincar livremente. O contexto urbano em que vivemos em nada contribui para que nos aproximemos de uma vida mais livre. A violência nas ruas nos aterroriza e nos sentimos cada vez mais inseguros em ocupar os espaços públicos com nossas famílias. Há cinza por todos os lados, do concreto dos grandes prédios à fumaça de poluição dos carros. As cidades têm crescido muito rapidamente e parece que as áreas verdes e as áreas para circular crianças não estão sendo priorizadas no planejamento desta expansão.
Dificilmente as crianças de hoje poderão sair de suas casas para brincar na rua sem a presença de um adulto. Necessariamente ela dependerá que esse adulto tenha tempo e condições de levá-la para brincar fora de casa, seja na pracinha, no parque ou na própria rua. E é desafiador para esse mesmo adulto priorizar a criança em meio à uma agenda tão ocupada com trabalho e obrigações.
É por não me conformar com a possibilidade que meu filho e outras crianças não tenham acesso à uma infância livre e saudáve.
Com o que eu tive nos anos 80, espero que o Brincar continue sendo tema recorrente em minha vida. Além das parcerias com o meu filho que, como mãe, naturalmente tenho que realizar, pretendo colocar no mundo um projeto profissional que incentive uma infância brincante e que contribua para que pais mais ocupados possam tirar os seus filhos de dentro de casa e levá-los para espaços de brincadeiras que proporcionem à criança exercer seu protagonismo da forma mais livre possível. As ruas estão mudadas mas eu sinto que é possível ajustar o formato e continuar permitindo que as crianças criem doces e divertidas memórias de suas infâncias. O brincar genuíno, aquele que todos os adultos deveriam continuar experienciando ao longo da vida, não tinha mais espaço em minha vida. Foi quando me tornei mãe, há quatro anos, e minha criança adormecida despertou fortemente em mim.
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