- Vitor Murano Pereira -
O brincar é uma das mais antigas ferramentas humanas. Ele existe para transmitir conhecimentos, contar histórias e perpetuar tradições. Com a brincadeira, é possível contar todo um processo de cultivação e colheita de uma aldeia, ou a história de um povo, ou até mesmo mostrar as entidades sagradas e como elas se manifestam no clima ou nas plantações. Até hoje, sem nós percebermos, aprendemos muitas coisas quando brincamos nas nossas infâncias. E esses são provavelmente alguns dos aprendizados mais duradouros que temos hoje em dia.
Isso porque o brincar é espontâneo e intrínseco. Ele faz sentido principalmente no contexto em que a brincadeira acontece e por isso nos marca muito mais do que outros aprendizados programáticos e curriculares que temos na escola. Ele faz sentido porque busca o que a criança quer, e é flexível para ela poder mudar da maneira que ela preferir. Então a brincadeira de uma geração não vai ser a brincadeira da outra, mesmo em povoados que usam isso de maneira religiosa e educativa. Isso porque a partir do momento em que aquela brincadeira for imposta e as crianças não poderem escolher como querem brincar, aquilo deixará de ser uma brincadeira pura e livre.
“Os jogos são artes populares, reações coletivas e sociais às principais tendências e ações de qualquer cultura. Como as instituições, os jogos são extensões do homem social e do corpo político, como as tecnologias são extensões do organismo animal. Tanto os jogos como as tecnologias são contra-irritantes ou meios de ajustamento às pressões e tensões das ações especializadas de qualquer grupo social. Como extensões da resposta popular às tensões do trabalho, os jogos são modelos fiéis de uma cultura. Incorporam tanto a ação como a reação de populações inteiras numa única imagem dinâmica.” McLuhan - 1974.
Quando Marshall McLuhan afirma isso, vemos que sim, uma sociedade que evolui e cria novas culturas também cria novas brincadeiras. O que ele afirma por “jogos” traz muito das características intrínsecas do que hoje em dia chamamos de “brincar” - flexível, intrinsecamente motivado, espontâneo -. É aquilo que reflete a realidade de qualquer povo, e que não está restrito a uma faixa etária ou grupo social. Todos podem brincar, desde que aquilo seja do interesse e que faça sentido para o brincante.
Huizinga (1938), também fala do jogo como parte da cultura de uma sociedade, mas de uma forma que parece muito com o brincar. Ele afirma que faz parte da nossa sociedade, do nosso ser humano. Ritos de passagem, rituais religiosos, como citamos anteriormente, refletem as crenças e características de um povo, e são criados por pessoas naquele contexto. Uma manifestação religiosa que venha de fora não faz sentido para eles, então dificilmente pode ser caracterizado como brincar, porque está sendo imposto por um agente externo.
Também como reflexo da sociedade, brincadeiras são ensinadas e passadas como intercâmbio de culturas, mas adaptadas para os costumes de cada povo. Vemos isso em brincadeiras que são feitas em estados ou até países diferentes, com suas variações e especificidades, e isso porque as pessoas se comunicam, viajam e trocam esses saberes, que vão se moldando aos costumes do local. É daí que vem as variedades regionais, como por exemplo, Truco se adaptou e modificou e tem variedades em diferentes estados.
O brincar também se cria quando a criança sente que quer um desafio a mais. Temos várias versões, por exemplo, de pega-pega, do jo-ken-po (pedra-papel-tesoura) que conta com vários elementos e explicações diferentes para seu funcionamento. Nós mesmos, quando crianças, usávamos “deus” “diabo” “corda”, “agulha” jogando jo-ken-po, e criávamos regras na hora, pensando em ter uma vantagem, ou ajustar nossa realidade ao que nos convinha. Isso faz parte do pensar de uma criança. Ela quer criar para poder ter uma vantagem ou desafio a mais, para tornar aquilo mais divertido.
Fez parte da minha infância aprender várias variantes da mesma brincadeira, desafios novos, adaptações do que víamos na televisão, nos videogames. Muitas vezes brincar de Power Rangers e inventar histórias, escolher seu X-men preferido ou até mesmo nos tornarmos nossos próprios mutantes, inventar o Ranger Laranja ou o Ranger Roxo era o que eu mais gostava, porque ali eu me sentia mais empoderado, sentia que eu podia ser o que eu quisesse.
Durante o curso, revisitei muitas dessas minhas lembranças de infância e encontrei sentido para elas. Entendi o que o brincar me tornou e como ajudou a me formar como pessoa, como indivíduo e educador. Provavelmente, o maior valor que eu encontrei tendo contato com os Agentes do Brincar foi entender o quão importante isso a brincadeira foi para mim como criança.
Os Agentes do Brincar são mediadores, educadores. Eles não vão ensinar a criança a brincar, mas criar o ambiente, o espaço para que a brincadeira aconteça. A brincadeira é um pouco como o vôo descrito por Rubem Alves:
“Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são pássaros em vôo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o vôo, isso elas não podem fazer, porque o vôo já nasce dentro dos pássaros. O vôo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado.”
Se levarmos esse ponto de vista para a função do Agente do Brincar, podemos criar uma interpretação nossa dessa reflexão: A brincadeira não pode ser ensinada, porque ela nasce dentro da criança, só pode ser encorajada.
Claro que isso reflete em vários pontos. A criança funciona em duas medidas diretamente proporcionais: liberdade e complexidade. Quanto mais livre a criança está, mais ela precisa ser orientada, para que ela saiba o caminho que está tomando. Isso torna todo o processo mais complexo do que simplesmente dizer o que ela deve fazer a mandá-la copiar aquilo que você fez. A criança que brinca livre aprende a lidar com fracasso, com ser excluída, se machucar, se irritar, ficar triste, mas nada disso que ela está passando fará totalmente sentido a não ser que haja alguém para mediar esse processo e explicar para ela que tudo isso faz parte da vida. Sedimentar esses processos e criar reflexões desse tipo na criança a ajuda a lidar com ansiedades, com frustrações, coisas que muitas pessoas dessa geração não entendem, porque seu processo de brincar não foi respeitado. A primeira aula do curso, não à toa, aborda principalmente sobre como o processo de brincar é mal compreendido e abandonado nos dias de hoje.
Crianças que ficam menos tempo debaixo do sol que presidiários, a cultura do Vestibular, que alega preparar desde a primeira infância para a entrar em uma faculdade, isso tudo está criando pessoas que mais para frente vão ser deprimidas, porque a única coisa que fizeram na vida foi se preparar para “ser alguém na vida” e nunca conseguiram se conhecer, entender seu corpo. Uma pessoa que não brinca acaba se sentindo reprimida, frustrada.
Essas questões acontecem pela má-interpretação do que é brincar, da importância do ócio e do descanso. E isso é muito contraditório considerando que autores como Huizinga (1938) e Winnicott (1975) já produziam trabalhos que alertavam sobre a importância do jogo e da brincadeira.
“É no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto fruem sua liberdade de criação” Winnicott (1975).
O conflito entre ócio versus trabalho acontece desde a ascensão da burguesia, logo após a Idade Média, mostrando um confronto direto entre o direito à descanso e a obrigação de produzir para alimentar o capitalismo. Isso porque o protestantismo e o puritanismo, por mais que condenaram a venda de lotes no céu, o perdão de Deus, também alimentaram uma mentalidade burguesa que tirava o tempo de ócio do povo para colocá-lo trabalhando.
“A relação do sistema capitalista e o ócio não se mostra conflituosa apenas na contemporaneidade. Durante o domínio da Igreja católica, os operários desfrutavam de 90 dias de descanso (52 domingos e 38 feriados), durante os quais era estritamente proibido trabalhar. O trabalho nesses dias era encarado como o maior crime do catolicismo, a maior causa de não-religiosidade da burguesia comercial. Com a ascensão ao poder da classe burguesa, esta aboliu os feriados. Lafargue (2001) analisa que
"o protestantismo, que era a religião cristã, moldada pelas novas necessidades industriais e comerciais da burguesia, preocupou-se menos com o descanso popular: tirou todos os santos do céu para abolir suas festas na Terra" (p.160)” Bruno Gawryszewski, 2003
E isso se estende as crianças também. Escolas que querem crianças que estejam prontas para o vestibular, aprendendo idiomas antes mesmo de se alfabetizarem, e pais que querem incluí-las em vários cursos para que elas não fiquem “ociosas”, então elas ficam muito tempo dentro de salas, estudando e acabam não tendo tempo para brincar, e se conhecerem. Foi isso que eu chamei de “cultura do vestibular” anteriormente.
Diante de tudo isso que é apresentado, podemos incluir dentro de tudo que foi dito sobre Agentes do Brincar que ele também é um militante. Ele defende o direito de brincar livremente para todas as crianças e está lá para que isso aconteça de maneira significativa e devidamente orientada.
O brincar não está dissociado do aprendizado. Uma criança que brinca no escorregador vivenciou coisas no corpo que vão ajudá-la a se alfabetizar. Paulo Freire (1981) relata como brincar no seu quintal o ajudou a entender o formato das letras, como escrever na terra livremente o ajudou a se alfabetizar. Ele diz que a leitura não está só no papel e caneta, mas no ambiente em que se vive, nas experiências que são vividas.
Isso é especialmente crítico para as crianças de inclusão, aquelas que têm alguma dificuldade no aprendizado ou mobilidade e precisam de uma atenção diferente. Uma criança na cadeira de rodas não consegue brincar de algumas coisas, e isso limita seu aprendizado de alguma forma, mas o Agente do Brincar pode intervir nessa dificuldade e ajudar essa criança, mostrando para ela que tem mais de uma forma dela brincar e que ela ser diferente não a faz pior que as outras, ela só tem outras necessidades.
Por isso, o Agente do Brincar é um nome auto-explicativo. Ele age para que o brincar aconteça de maneira saudável, significativa e inclusiva. Ele milita para que esse direito seja garantido para todos e que tudo esteja devidamente orientado, entendido e registrado. Ele não é um monitor que impõe a brincadeira, mas alguém que sugere, aplica e ouve. É o trabalho de um mediador da brincadeira, que precisa ser sempre consciente do que está sendo aprendido, exercitado e de quem aproveita mais certas brincadeiras.
FONTES:
http://www.sbpcnet.org.br/livro/57ra/programas/CONF_SIMP/textos/mteresaricci.htm - O Ócio e a Emancipação - Maria Teresa Ricci - Acessado em 20/06/2017
https://educacao.uol.com.br/noticias/2011/09/12/melhor-colegio-de-sp-no-enem-por-escola-nao-aceita-matriculas-no-3-ano-e-estuda-o-aluno-antes-de-aceitar-o-ingresso.htm - Reportagem do UOL sobre o Colégio Vértice e sua preparação para o vestibular - Acessado em 20/06/2017
http://www.efdeportes.com/efd66/ocio.htm - A Luta Capitalista Contra o Ócio - A Necessidade à um Lazer Consumista - Bruno Gawryszewski - Acessado em 20/06/2017
http://escola.educacaofisicaa.com.br/2013/01/7-variacoes-de-pega-pega-brincadeira.html - 7 Variações de Pega Pega - Brincadeira Infantil - Acessado em 20/06/2017
https://www.youtube.com/watch?v=YX1om1kDpdo - Midias e Jogos: do virtual para uma experiência corporal educativa - Acessado em 19/06/2017
http://www.revistaeducacao.com.br/gaiolas-ou-asas/ - Texto do Rubem Alves sobre educação libertadora - Acessado em 19/06/2017
REGEN, MILA. O brincar na comunidade inclusiva. Mini Apostila, - IPA, São Paulo, 2017.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez, 1990.
MCLUHAN, Marshall, Os Meios de Comunicação Como Extensões do Homem. Nova York: McGraw-Hill Book Company, 1964.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 2000
SCHWARTZ, Gilson. Brinco, Logo Aprendo. São Paulo: Paulus, 2014.
WINNICOTT, D. W. O brincar & a realidade. Trad. J. O. A. Abreu e V. Nobre. Rio de Janeiro: Imago. 1975
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