- Maricota Vieira Carvalho -
O Agente do Brincar se funda nas evidências dos benefícios do brincar como o responsável por garantir que o direito ao livre brincar seja posto em prática num momento histórico em que ele está cada vez mais restringido. Tim Gill (2007) diz, a respeito da sociedade inglesa, que as crianças estão mais invisíveis do que nunca na história. Razões não faltam: o volume de carros na rua dificulta o livre brincar nas ruas; a cultura de medo que perpassa os pais e cuidadores priva crianças do livre brincar fora dos muros de casa e da escola; a estrutura social vigente de adultos trabalhando em ambientes corporativos aumenta o número de horas que crianças passam na escola e o brincar na cidade tem sido cada vez mais restrito e controlado em ambientes controlados.
Assim como Malaguzzi (1984) falou sobre a educação não ser uma produção, mas sim a criação de condições para a aprendizagem, a ação do Agente do Brincar se dá através da criação de experiências e oportunidades de brincar autodirigido, de livre escolha e guiado por motivação intrínseca, do auxílio à criação de tais experiências e oportunidades por brincantes e de sua multiplicação. Essas experiências e oportunidades são criadas através da remoção de barreiras para o brincar, do enriquecimento do ambiente (Brown e Webb, 2002) e de intervenções em função de promover o brincar, equilibrando o risco e o benefício para o desenvolvimento e bem-estar dos brincantes.
De acordo com Nicholson (1971), “em qualquer ambiente, tanto o grau de inventividade e criatividade quanto a possibilidade de descoberta são diretamente proporcionais ao número e ao tipo de variáveis nele”, portanto o Agente do Brincar potencializa os estímulos ao brincar criativo agindo como meio, enriquecendo o ambiente de forma a encorajar e empoderar os brincantes a descobrir o mundo por si mesmos. Hughes (2001) critica o enviesamento de estímulos de playgrounds com brinquedos fixos e com funções bem definidas, em contraposição à diversidade de estímulos de um ambiente com materiais desestruturados, como caixas de papelão, canos de PVC e tampas de garrafas proporciona.
O Contínuo de BRAWGS é uma tentativa de responder à aparente contradição entre oferecer um ambiente seguro que também oferece a oportunidade de explorar ideias, sentimentos e habilidades. Para Russell (2008), o Agente do Brincar adota uma abordagem ludocêntrica, buscando um meio-termo entre a ordem e o caos, num contínuo que parte do didático (diretivo) para o caótico (negligente). No extremo didático temos uma atividade altamente estruturada definida por um adulto com regras rígidas, no extremo caótico, um espaço sem horário definido para abrir, com cuidadores não capacitados, utilizando materiais perigosos. A abordagem ludocêntrica se preocupa principalmente com o brincar autodirigido, de livre escolha e guiado por motivação intrínseca.
Sutton-Smith (2001) tratou das “deixas” no brincar, dicas sutis que os brincantes dão através das quais os Agentes do Brincar “desenvolvem insights e respostas interpretativas, auxiliando ainda mais, e talvez o aprofundando, expressões de conteúdo lúdico”. Para Shelly Newstead e Chris Bennett (2005), é preciso desenvolver algumas habilidades no sentido apurar a resposta às “deixas” do brincar:
- a habilidade de oferecer à criança a escolha de quando e onde brincar, com quem e com o que e até se querem brincar;
- a habilidade de respeitar sem estigmatizar ou restringir sua escolha;
- a habilidade de observar o brincar e as interações entre os brincantes e em direção ao Agente do brincar, e a habilidade de decidir ou não intervir;
- a habilidade de fazer perguntas e sugestões em detrimento de oferecer soluções;
- a habilidade de ser brincalhão e estar sempre disposto a embarcar no caráter lúdico das interações com os brincantes e
- a habilidade de ser sensível aos estados lúdicos da criança e saber fazer transições entre eles, quando necessário.
Huizinga (1938) analisa a antítese ludicidade-seriedade, verificando que os dois termos não possuem valor idêntico: brincadeira é positivo, seriedade é negativo. O significado de “seriedade” é definido de maneira exaustiva pela negação de “brincadeira” — seriedade significando ausência de brincadeira e nada mais. Por outro lado, o significado de “brincadeira” de modo algum se define ou se esgota se considerado simplesmente como ausência de seriedade. O brincar é uma entidade autônoma. O conceito de brincar enquanto tal é de ordem mais elevada do que o de seriedade. Porque a seriedade procura excluir o brincar, ao passo que o brincar pode muito bem incluir a seriedade.
Sutton-Smith (2001) argumenta, que por mais que todos tenhamos a experiência da brincadeira, o brincar é difícil de definir. Em vez de tentar fornecer uma definição que seja excessivamente simplista, ele sugere que a ambiguidade do brincar deve ser reconhecida, e que o brincar deve ser visto da perspectiva de diferentes retóricas, cada uma das quais serve para enfatizar vários aspectos do brincar. As retóricas são formas de pensar e falar sobre o brincar culturalmente e socialmente. Elas oferecem perspectivas abrangentes sobre o que é brincar e o papel que desempenha em culturas e sociedades.
A retórica do brincar como progresso centra-se nos aspectos de desenvolvimento do jogo e na noção de que as crianças aprendem através do jogo. Essa retórica também está ligada a estudos do brincar entre animais. O brincar é fundamental para a vida animal e humana. Os biólogos evolucionistas que estudaram brincadeiras de animais identificaram que o brincar é de vital importância, pois permite a prática de habilidades essenciais para a sobrevivência.
O brincar também foi considerado significativo para a saúde mental e física dos animais e para o desenvolvimento social dentro das espécies. Huizinga (1938) fala de nossa espécie como Homo Ludens, sem a ingenuidade do culto à razão do Homo Sapiens. Como humanos, buscamos o prazer, porém na contemporaneidade o lúdico está circunscrito à infância, suprimido e restrito na vida adulta. Para Huizinga o próprio processo civilizatório se encarrega de empurrar o elemento lúdico gradualmente para segundo plano, sendo sua maior parte absorvida pela esfera do sagrado. O restante cristaliza-se sob a forma de saber: folclore, poesia, filosofia, e as diversas formas da vida jurídica e política. Fica assim completamente oculto por detrás dos fenômenos culturais o elemento lúdico original.
O brincar é um impulso natural da criança e funciona como um grande motivador; mobiliza esquemas mentais, estimula o pensamento, a ordenação de tempo e de espaço; integra várias dimensões da personalidade: afetiva, social, motora e cognitiva. Além disso, favorece a aquisição de condutas cognitivas e desenvolvimento de habilidades de coordenação motora grossa e fina e manutenção da plasticidade cerebral.
Com base na pesquisa sobre a eficácia da ludoterapia, Schaefer e Drewes (2014) identificam como principais potenciais terapêuticos do brincar:
Facilita a comunicação, incluindo o aumento da auto-expressão;
Promove o bem-estar emocional e pode ser catártico, permitindo o gerenciamento do estresse;Melhora as relações sociais, fortalecendo o apego e promovendo a empatia;
Aumenta as forças pessoais, incluindo a melhoria da resolução criativa de problemas e a capacidade de resiliência. Se as crianças são privadas do seu direito de jogar, portanto, pode haver implicações significativas para seu desenvolvimento físico, mental e social.
Na retórica do brincar como identidade, o brincar é visto como um meio de construir e confirmar identidades sociais através de celebrações e festivais comunitários.
De acordo com Kishimoto (2007) o brincar é uma atividade lúdica em que crianças e adultos compartilham de uma situação de envolvimento social num tempo e espaço determinados, com características próprias delimitadas pelas próprias regras de participação na situação “imaginária”. O brincar tem função significante, encerra um sentido e inclui sempre intenção lúdica do brincante. Por se tratar fundamentalmente de uma atividade social, é vetor das respectivas histórias culturais circunscritas em suas práticas, como por exemplo através da contação de histórias folclóricas ou de brincadeiras com cantigas de roda. Enquanto fato social, o brincar assume a imagem, o sentido que cada sociedade lhe atribui. É este o aspecto que nos mostra por que, dependendo do lugar e da época, as brincadeiras assumem significações distintas.
O brincar é, como observou Huizinga, um fenômeno significativo em todas as culturas, mas é experimentado de forma diferente em cada cultura. Os valores e normas de qualquer cultura dada darão forma à forma como o brincar é experimentado.
A retórica do brincar como auto-conhecimento normalmente se refere a atividades individuais e brincadeiras, onde o brincar é visto como uma forma de relaxamento e fuga da vida cotidiana. O brincar é uma atividade autodirigida, de livre escolha e guiada por motivação intrínseca. Quem brinca determina e controla o conteúdo e a intenção daquela brincadeira ao seguir suas próprias ideias e interesses, à sua maneira e por seus próprios motivos.
A retórica do brincar como frívolo é geralmente aplicada a atividades da figura históricas do bufão, refere-se às atividades de pessoas que protestam de forma lúdica contra a ordem social e cultural da vida cotidiana. Também, e com igual importância, o brincar é valoroso pelo estímulo, prazer e encantamento que traz, para além do racionalismo econômico, que demanda produtividade e apresenta como tarefa da criança se tornar um adulto produtivo, enxergando a brincadeira e o desenvolvimento que ela traz como preparação e para o rigor da vida adulta. Para além da ética utilitarista, que enxerga o brincar pelos benefícios que acarreta para o desenvolvimento das crianças.
O brincar digital nos ajuda a entender mais sobre as amplas variações nos estilos de jogo e escolhas e pode oferecer potencial para pessoas com deficiência que não estão disponíveis no brincar "tradicional". O brincar digital também inclui versões do jogo tradicional em diferentes formatos - há um continuum, não uma dicotomia.
Através da tecnologia assistiva, que permite aumentar, manter ou melhorar habilidades de crianças com limitações funcionais, ampliam-se as possibilidades de interação com brinquedos e de inclusão nas brincadeiras.
Referência Bibliográfica
BROWN, F. Playwork Theory and Practice, 2002.
BROWN e WEBB. Playwork, an attempt at definition, 2002.
GILL, T. No Fear: Growing Up in a Risk Averse Society, 2007.
HUGHES, B. Evolutionary Playwork and Reflective Analytic Practice, 2001.
HUIZINGA, J. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 2000.
KISHIMOTO, T. O Jogo e a educação infantil. São Paulo: FSC/CED, NUP, n. 22, Perspectiva, 1994.
MALAGUZZI, L. L'occhio se salta il muro: narrativa dei possibile, 1984.
NEWSTEAD, S e BENNETT, C. The Busker’s Guide to Playwork, 2011.
NICHOLSON, T. A question of function, 1971.
Playwork Principles Scrutiny Group, Playwork Principles, 2005
Schaefer e Drewes. The Therapeutic Powers of Play: 20 Core Agents of Change, 2014.
SUTTON-SMITH, B. The Ambiguity of Play. Harvard
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