- Joseane Soares da Costa Lourenço-
Acordar cedo, comer rapidinho, tomar banho sozinha, passar a maior parte do dia na escola, curso de idiomas, ficar com cuidadores em casa, acessar o celular para jogar, assistir vídeos e ouvir músicas, tratamento psicológico e medicamentoso, é a rotina de muitas crianças, frutos de pais e mães do século XXI, que sobrevivem ao mundo moderno, com rotinas intensas de trabalho em instituições e/ou como empreendedores individuais, e que mesclam o seu grande montante de atividades, com seu pouco tempo de dedicação à sua prole.
Esse relato é fruta de conversas informais, realizadas em junho de 2019, com pais e mães de uma grande instituição privada multinacional, com um de seus escritórios localizado em São Paulo.
Essa problemática está estritamente relacionada com uma cultura essencialmente capitalista, onde a produção e o consumo exacerbado em diversos setores, se faz presente em grande parte da população. Além disso, a pressão por produtividade, com poucas práticas ligadas ao bem-estar dos funcionários e funcionárias, faz crescer a carga horário de trabalho, ocasionando o distanciamento dos membros da família e, principalmente a falta do cumprimento dos direitos de nossos “feitores do futuro”, denominados de crianças, que são privadas do que lhes são asseguradas na Declaração dos Diretos da Criança (1959) e reforçadas na Convenção dos Direitos da Criança (1989), que preza pelo lazer, cultura e liberdade.
O modo de vida contemporâneo acima relatado, muitas vezes acaba por ignorar as crianças em seu processo evolutivo, pois as mesmas passam a maior parte do tempo confinadas, com toda a energia represada, e junto delas, se vê o esgotamento de suas fontes de desenvolvimento, uma vez que o brincar lhes são negadas. Quando os pais e mães chegam em casa exaustos, lhes direcionam apenas questionamentos sobre a conclusão de suas tarefas escolares ou domésticas cotidianas, e poucas vezes dão espaços para uma troca de afeto ou diálogo sobre seus sentimentos e dúvidas em relação ao mundo em que lhes cercam.
Para explicar a importância do brincar nesse mundo contemporâneo, vamos iniciar com a conceituação do brincar.
Segundo o site Dicionário Informal, o brincar
“é uma ação que se desenvolve no ato de jogar. Aprendizado cultural, que se expressa em diversas formas”.
De acordo com o site Infopedia, brincar é “divertir-se (com jogos); entreter-se (com brincadeiras infantis); recrear-se; distrair-se; folgar”.
Ainda assim, o site Brasil Escola faz a seguinte definição sobre o brincar: “O brincar é uma experiência que possibilita à criança demonstrar sua personalidade, uma vez que são manifestas ação e imaginação, é despertada também para conseguir seus objetivos”.
No livro “O Palhaço e o Psicanalista”, Christian Dunker e Cláudio Thebas discorrem sobre experiências com o brincar e as classificam, por meio da fala de uma criança que: “Depois que a gente brinca, a gente fica amigo”. Nessa fala, podemos conceituar o brincar como um canal de conexão da criança com o meio, com o outro e com ela mesma, ou seja, é por meio do brincar que ela se sente mais confiante, fortalecida e disponível a tudo ao seu redor.
Para traduzir esse conceito em uma prática real, imagine-se brincando de “pega-pega”, onde você é uma das pessoas que será pega. Quando você está correndo do pegador, você está conectada com o meio, pulando obstáculos, atento ao espaço/distância; ao outro, observando se o pegador será capaz de te pegar, se ele é veloz, e consigo mesma, gerenciando suas emoções, medo de ser pega, alegria por conseguir escapar, seus limites, até qual distância conseguirá percorrer sem perder o fôlego, entre tantos outros sentimentos que o deixa em estado de alerta e conexão total com o que se vive.
Quando uma sociedade não reconhece a importância do brincar para uma criança, está negando a evolução de uma nação, pois é por meio do brincar que a criança desenvolve sua criatividade, sua capacidade de socialização, sua habilidade de comunicação e de solução de problemas quando adulto. Além disso, segundo o livro Combate ao Trabalho Infantil - Guia para Educadores, “o brincar expressa aquilo que há de universal e permanente na infância humana e as peculiaridades de uma determinada cultura ou grupo social”.
Para ilustrar a universalidade e a importância do brincar em meio a sociedade, foi realizada uma pesquisa qualitativa, com 38 respondentes sobre duas questões simples a respeito do brincar:
1) O que é brincar?
2) Do que você mais gosta de brincar?
A maioria dos respondentes associa o brincar com diversão, distração e com a transposição para um universo paralelo à realidade, onde a imaginação e a criatividade tomam conta do indivíduo e o deixa fluir em um ambiente de leveza, felicidade e vivacidade. Diversas brincadeiras foram citadas, entre elas: brincadeiras de faz de conta e brincadeiras coletivas (pega-pega, duro ou mole, corda, queimada, futebol, taco, esconde-esconde, gato mia, entre outras).
O semblante de cada “ser brincante” ao responder às perguntas era: de nostalgia, quando era um respondente adulto, e uma inquietude e agitação contagiante quando criança. Ainda pode ser observado, quão valorizados foram e são os momentos de brincadeiras. A cada questionário finalizado, o papo sobre o brincar se estendia e deixava transparecer um sentimento de desejo saciado nas brincadeiras, de voltar no passado e de fazer uma partida de taco ou pega a pega coletivo, para relembrar as sensações vividas, pois é o mais valorizado por todas as crianças e adultos. Isso fica bastante evidenciado na fala da sra. Lígia Ruvenalth, 67 anos, que retrata suas brincadeiras favoritas com muita descontração:
“Eu ainda brinco, sou uma menina enrugada. Porém quando criança, brincava de fura pé, e montar quebra-cabeças. ”
A brincadeira não é apenas uma atividade autogratificante e prazerosa, ela é também uma forma de pensar e simbolizar. Brincar de boneca ou se super-herói não é apenas uma preparação modificada para nossos papéis sociais vindouros, também ajuda a dar forma aos nossos ideais e desejos, a reconhecer as “regras” do jogo social no qual estamos imersos e, portanto, abrir soluções inusitadas para problemas mal formulados. (DUNKER, Christian; THEBAS, Cláudio 2019, pg. 54).
Segundo o Guia dos Agentes do Brincar, “(...)
Enquanto brincam, as crianças adquirem os conceitos de valores, limites e responsabilidades, recebendo informações sobre o que podem e não podem fazer”. Uma criança que não tem acesso ao brincar, também perde possibilidades de explorar o mundo e de encontrar o seu lugar nele, pois a capacidade de se relacionar com o outro e com ela mesma, está intrinsicamente enraizada nas relações vividas no brincar. No brincar livre, a criança pode exercer a sua voz, imprimindo os seus significados a partir de suas fantasias e de suas percepções. Quando um adulto resume a brincadeira à objetos concretos (ex.: bonecas mais caras da época, celulares, tablets, etc) e não dão permissão à imaginação, estão deixando de lado a capacidade da criança em expor e compor suas brincadeiras a partir de suas próprias crenças. Nesse sentido, os adultos assumem um papel importantíssimo no ato de brincar, eles são os responsáveis por fornecer um ambiente convidativo e amoroso, para as crianças brincarem, sempre focando na escuta aguçada dos desejos e segurança das crianças.
O adulto precisa se preocupar em caminhar junto, em estar presente como apoio na conquista de liberdade das crianças, de lhe apoiar no longo caminho de aprendizado, do respeito mútuo, da tolerância, da frustração e da aceitação e enfrentamento dos limites dados por cada jogo/brincadeira.
Nesse contexto, a excessiva vontade de se chegar ao fim do caminho, com grandes currículos, uma conta bancária azul, as melhores roupas, uma casa gigante, o carro da época e os brinquedos mais caros, não levam a apreciação do caminho percorrido por nossos pequenos e grandes “feitores do futuro” (crianças), que precisam da presença de um ser em um estado brincante (pais, familiares, cuidadores, amigos e sociedade), para aprender a ser, a conviver, a conhecer, a fazer com seu exemplo e encontrar o seu lugar no mundo.
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