- Sara Caroline da Silva -
“É no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto fruem sua liberdade de criação.” (Winnicott, 1975.)
O ato de brincar é fundamental no desenvolvimento humano. Brincar no dicionário Aurélio está relacionado à diversão, a entretenimento infantil, gracejos e até atos levianos e de pouca consideração. Diferente desses significados ou indo além, a brincadeira na infância não é uma mera distração, é um instrumento essencial para o desenvolvimento cognitivo, para a aprendizagem, onde os sinais, a fala e atitudes denotam afetividade e as mais diversas emoções.
É na infância que descobrimos coisas novas, entrando em contato com o mundo e os indivíduos que nos cercam. O brincar, nas suas mais diversas formas e modalidades, ampara o desenvolvimento infantil de modo a auxiliar à criança na inserção enquanto sujeito social e se integrar nas realidades do “mundo adulto”, fazendo com que a criança crie, participe e tome parte das realidades que a cerca, como brincadeira de “faz-de-conta, que segundo Piaget:
“Está intimamente ligada ao símbolo, uma vez que por meio dele, a criança representa ações, pessoas ou objetos, pois estes trazem como temática para essa brincadeira o seu cotidiano (contexto familiar e escolar)(...)” (PIAGET, p.76)
Embora, as brincadeiras, muitas vezes reproduzam de algum modo à realidade ou imitam o cotidiano adulto, como profissões e tarefas domésticas, elas podem e devem envolver uma dose de imaginação. O brincar de casinha, de policia- e- ladrão, por exemplo, está sujeito as normas estabelecidas pela criança, que recria e adapta essas situações para o “seu mundo”, onde a casa pode ser mágica, e a policia é amiga do bandido. Da mesma forma que a função pré- estabelecida de alguns brinquedos, podem vir a ser modificados, transformando, por exemplo, um carro em foguete. O modo na qual os pequenos utilizam os brinquedos pode desviar-se, portanto das normas convencionais, já que a criança visa antes da cópia fiel das atividades adultas, construir e recriar um mundo onde seu espaço esteja garantido. Segundo Vygotsky (1998) a concepção de uma situação imaginária não é algo casual na vida da criança; é na verdade a primeira manifestação da emancipação da criança em relação ao que ele chama de restrições situacionais. (VYGOTSKY, 1998, p. 130).
As brincadeiras não se atêm apenas ao faz- de-conta e podem ocorrer entorno de assuntos fictícios, contos e personagens, mas que nunca são puramente imaginativos, já que o brincar é fruto também do meio social da qual se está inserido. Assim, independente do quão “longe vá à imaginação”, ela sempre conterá traços dos processos vividos pela criança, núcleo familiar e social: o super- herói pode gostar de determinada comida, hobbies, cores e ter determinados comportamentos que estão associados aos gostos da própria criança ou ao que ela costuma vivenciar. De modo que não podemos dissociar a brincadeira da vivencia particular do sujeito que a prática:
“Nenhuma criança brinca só para passar o tempo, sua escolha é motivada por processos íntimos, desejos, problemas, ansiedades. O que está acontecendo com a mente da criança determina suas atividades lúdicas; brincar é sua linguagem secreta, que devemos respeitar mesmo se não a entendemos.” (GARDNEI apud FERREIRA; MISSE; BONADIO, 2004)
O brincar instiga a criança em várias dimensões, principalmente no cunho comportamental, psicológico e físico, ensinando regras de convivência, aumenta a dose de criatividade, auxiliando no desenvolvimento do individuo e na aprendizagem. De tão importante e inerente à natureza humana, a brincadeira é naturalmente assegurada e se estende a todos os indivíduos. Correto?
Esse direito básico é atualmente protegido por lei, justamente por não atingir todas as parcelas da população, precisou ser regulamentado. No Brasil, é o Estatuto da Criança e do Adolescente que assegura aos pequenos, desde 1990, o direito a brincar, praticar esportes e se divertir, ou seja, assegura que se possa passar a infância de modo a crescer e aprender saudavelmente. Entretanto, apenas um papel não consegue de fato, garantir que não haverá crianças trabalhando em situações análogas a escravidão, não consegue extinguir os 2,7 milhões de postos em trabalhos infantis catalogados em 2016 pela Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios, ou modificar a situação de miséria que muitas crianças se encontram, resultando na necessidade de “adultização” precoce e preocupações que não deveriam afligir certas idades. Não se pretende desvalorizar tal estatuto, só ponderar que apenas a lei não basta, que ela deve vir acompanhada de outras leis e medidas protetivas que perpassam, por exemplo, no âmbito econômico.
Em outro cenário, porém indo ao encontro das dificuldades sobre o brincar, notamos uma sociedade que parece entender a brincadeira como inerente a infância, ao mesmo tempo que não a vê como um fator absolutamente necessário ou de extrema importância. Os pais restringem o espaço e a hora. A própria escola, os espaços exteriores, a cidade, os prédios, as pessoas... Acompanham tudo e julgam aquelas crianças, que ousam brincar em espaços e horas que não são considerados corretos e aceitos socialmente.
A própria escola, se coloca como “espaço para aprender e não para brincar”, como se um, fosse dissociado do outro. Logo ela, que pode ser uma das maiores aliadas na compreensão das disciplinas, que pode ensinar o individuo a ser mais compreensível e altruísta. O que também não significa que devemos ver a brincadeira apenas funcionalmente, ela se basta.
Poderia ser vista também, como aliada na recuperação de doenças e deficiências, mas é colocada por vezes, como imprópria para hospitais. Espaços culturais, museus, bibliotecas e exposições, não a consideram adequada entre suas estantes. Os pais abarrotam a agenda dos pequenos com “mil e uma atividades” extremamente práticas, que “servirão para o futuro”, sem pensar que esse “futuro” depende do desenvolvimento proporcionado pelo brincar.
Bibliografia
FERREIRA, Carolina; MISSE, Cristina; BONADIO, Sueli. Brincar na educação infantil é coisa séria. Akrópolis, Umuarama, v. 12, n. 4, p. 222-223, out./dez. 2004.
MELO, Luciana; VALLE, Elizabeth. O brinquedo e o brincar no desenvolvimento infantil. Psicologia Argumento, Curitiba, v. 23, n. 40, p. 43-48, jan./mar. 2005.
PIAGET, J. A formação do símbolo na criança: imitação jogo e sonho, imagem e representação. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
QUEIROZ, Norma; MACIEL, Diva; BRANCO, Ângela. Brincadeira e desenvolvimento infantil: um olhar sociocultural construtivista. Paidéia, 2006, 16(34), 169-179.
ROLIM, Amanda; GUERRA, Siena; TASSIGNY, Mônica. Uma leitura de Vygotsky sobre o brincar na aprendizagem e no desenvolvimento infantil. Rev. Humanidades, Fortaleza, v. 23, n. 2, p. 176-180, jul./dez. 2008.
VYGOTSKY, L. (1984). Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes.
VYGOTSKY, L. (1998). A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes.
WINNICOTT. D.W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro. Imago, 1975.
2,7 milhões. Esse é o número de crianças que trabalham no Brasil. Revista Exame. Talita Abrantes , 25 nov 2016. http://exame.abril.com.br/brasil/27-milhoes-esse-e-o-numero-de-criancas-que-trabalham-no-brasil/
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