- Karol Romão Rodrigues Veroneze -
A sociedade em que vivemos valoriza a superexposição de tudo o que se faz. E no caso das crianças a super valorização está focada no quanto a criança está ocupada com atividades que possam agregar na sua vida. Afinal, quanto mais atividades, mais “conhecimento" essa criança terá.
E assim seu currículo já começará a ser lapidado precocemente. No entanto, a sociedade parece esquecer, ou simplesmente ignorar, como a infância é um dos períodos de maior aprendizado de uma pessoa. E o quanto essa fase pode ser transformadora na vida de qualquer ser. É notório que o nosso mundo está doente em diversos aspectos, mas também é fato que a mudança pode começar na simples atitude que temos com as crianças.
Dar importância e oportunidade pelo livre brincar já seriam os primeiros passos para essa mudança? Ou só isso não bastaria? Mas para que qualquer transformação aconteça o primeiro passo precisaria ser dado, o livre brincar precisa ser mais valorizado e difundido, pois poucos realmente sabem o quanto ele pode agregar para a vida das crianças. Especialmente por estarem em uma fase de desenvolvimento. Por isso, inclusive, muitos médicos passaram a indicar “o brincar como um remédio” pois já foi comprovado que existem inúmeros benefícios.
Em 2018, a Academia Americana de Pediatria ratificou essa tese com a publicação de um artigo científico, recomendando que a brincadeira é o melhor remédio para o desenvolvimento das crianças. Pois é por meio dela, de acordo com cada faixa etária, que conseguiremos promover o aprendizado de habilidades de cognição até as socioemocionais, além do aperfeiçoamento de habilidades motoras, entre outras, que trazem diversos estímulos importantes.
Hoje em dia nós vemos cada vez mais as crianças deixando de brincar ao ar livre para ficar interagindo no celular ou jogando jogos na internet, tablet e outras mídias eletrônicas. Por mais que essas tecnologias façam parte das nossas vidas, nós não podemos permitir que elas prevaleçam (sob) sobre o tempo do brincar.
Segundo dados apresentados pela Revista Crescer em 2019 “82% dos entrevistados pensam que os filhos brincam menos do que eles próprios quando eram crianças e 70% concordam que os pequenos não têm tempo suficiente para se divertir”. Fonte: Pesquisa Play Under Pressure (Brincar sob Pressão, em tradução livre), realizada pelo Museu das Crianças de Minnessota (EUA), com mais de mil pais e mães. Essa pesquisa exemplifica o quanto precisamos incentivar o brincar das crianças, dar oportunidade para que ela conheça o mundo por outras perspectivas, além do que é possível por meio de uma interação eletrônica/virtual.
É claro que, em alguns momentos, o meio digital se faz necessário, como o que vivemos com a pandemia do coronavírus. Mas não podemos esquecer de que tudo é questão de equilíbrio. Saber dosar e organizar o tempo para criarmos uma rotina que foque também no brincar é essencial para o desenvolvimento infantil.
E se não for possível ter esses momentos num ambiente como uma área verde ou parque, já que o contato com a natureza traz experiências riquíssimas, que pelo menos esses momentos possam permitir o explorar, o descobrir, o aprender e o experienciar. Afinal, a forma mais simples de uma criança aprender é brincando. A linguagem da criança é lúdica.
Enquanto estamos nessa fase de isolamento social com as crianças em casa, a psicóloga Rosely Sayão sugeriu (em matéria para o Jornal Folha de São Paulo do dia 18 de março de 2020 – auge da pandemia do coronavírus) que soltar a imaginação e até transformar os afazeres domésticos em brincadeiras, seria uma oportunidade de brincarmos com as crianças. Além de ser mais uma brincadeira para tirar as crianças da frente das telas e proporcionar o brincar de outras formas, também promove a aprendizagem sobre a dinâmica da casa com ludicidade.
O poder do brincar
E foi acreditando no poder do brincar que a comunidade internacional deu início à trajetória do brincar como direito humano. Em 1959 institui-se a Declaração dos Direitos da Criança. Anos depois, mais precisamente em 1989, esse direito foi fortalecido com a Convenção dos Direitos da Criança. É por meio deste documento criado na Convenção que temos o artigo 31, que foca justamente no desenvolvimento infantil e o direito de brincar.
Mesmo com essas diretrizes, ainda era preciso de mais incentivos públicos para tornar a corrente do brincar mais forte. Unindo esforços seria possível promover ainda mais discussões, reflexões e engajamentos, para assim criar propostas que visem ao direito das crianças. Com esse objetivo, os deputados trouxeram luz às questões como “envolver as crianças de até seis anos na formatação de políticas públicas, a ampliação da licença paternidade, além de também garantir o direito ao livre brincar, entre outros”.
Assim foi criado o marco legal (lei 13.257 de 08 de março de 2016) com foco pela primeira infância – de 0 a 6 anos – que é tido como período em que as primeiras conexões neurais são formadas. Tudo o que se constrói nessa etapa da vida se refletirá nas ações deste adulto no futuro. Com essa lei, a ciência tornou-se aliada da causa, podendo assim, contribuir com a criação de projetos para o público infantil. Outro ponto a se considerar no poder do brincar está na necessidade de ouvir as nossas crianças.
Mesmo em algumas faixas etárias em que a linguagem não está tão desenvolvida, o brincar permite a comunicação por outros métodos. E isso vai contribuindo para o relacionamentos dos pequenos com suas famílias, fortalecendo as relações com o primeiro núcleo social que pode, assim, trazer benefícios para todas as relações.
Na pesquisa realizada pelas autoras Dodge, Janine e Carneiro, Maria Ângela, no livro “A descoberta do brincar”, foi possível constatar o quanto as crianças estão cada vez mais inertes, envolvidas com o estímulo da televisão e de videogames. Além disso, as próprias crianças tiveram oportunidade de relatar o quanto o brincar é primordial para elas e seus responsáveis não compreendem essa necessidade. Sendo que alguns adultos podem agir dessa forma por estarem focados, principalmente, nos seus trabalhos e obrigações.
Por mais que as causas dessa questão possam ser inúmeras, é possível promovermos mudanças. Ao questionarmos nossas ações com as crianças já criamos uma onda pela transformação das nossas relações com nossos filhos, sobrinhos, alunos, etc.
A tomada de atitude, dando oportunidade ao livre brincar e também auxiliar a criança na valorização desse momento, fará com que no futuro possamos ter relações mais saudáveis em nossa sociedade.
Cada um de nós é responsável por plantar a semente do brincar, para assim despertamos a humanidade do efeito inconsciente que hipervaloriza a qualidade de um currículo precoce e atividades extras, em detrimento a todas as relações. Afinal, o poder do brincar transcende qualquer barreira e só tem a agregar no desenvolvimento infantil.
Comments